Abstract: Resumo O jogo é, nas suas diversas modalidades, uma atividade normal e positiva no desenvolvimento das pessoas. Em 2017, 60,2% da população de 15 a 64 anos refere ter jogado jogos com dinheiro (63,5% em homens e 56,9% em mulheres) e mais de 70% dos jovens entre os 6 e os 24 anos jogaram videojogos. O jogo patológico refere-se a um padrão de jogo problemático persistente e recorrente que causa deterioração ou mal-estar clinicamente significativo. A 5.ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais (DSM-5) inclui como novidade uma nova categoria denominada “distúrbio por jogo na Internet”. O aspeto nuclear dos padrões de comportamento disfuncionais relacionados com o jogo é a perda de controlo sobre a atividade, que continua apesar das suas consequências negativas. Existem diversas ferramentas de triagem de padrões de jogo patológico, algumas delas concebidas especificamente para jovens.
Keywords: Jogo patológico; dependência do jogo; juventude; triagem; apostas; jogos de vídeo
O jogo é, nas suas diversas modalidades, uma atividade normal e positiva no desenvolvimento das pessoas. Permite o seu crescimento psicológico e social e facilita a internalização de normas sociais e de convivência. O jogo patológico é geralmente associado aos jogos de azar que têm um incentivo económico, mas, no entanto, também pode ocorrer nos tipos de jogos que não o têm e são um mero hobby por si só (como os videojogos).
O Observatório Espanhol de Drogas e Adições elaborou recentemente um relatório sobre adições comportamentais com base em informações obtidas pelos inquéritos “EDADES” e “ESTUDES” (Observatorio Español de las Drogas y las Adicciones, 2019). De acordo com este documento, em 2017, 60,2% da população de 15 a 64 anos refere ter jogado jogos com dinheiro (63,5% em homens e 56,9% em mulheres). Existe uma grande diferença entre o jogo com dinheiro online, com uma prevalência de jogo no último ano de apenas 3,5% e o jogo presencial, com uma prevalência de 59,5% no ano passado. Em relação ao tipo de jogos utilizados, pode-se observar como entre as pessoas que jogam de forma presencial predominam as que jogam à loteria convencional ou às loterias instantâneas, ao passo que o jogo mais praticado entre as que jogam online são as apostas desportivas. Analisando os dados do inquérito “EDADES” de 2017, este relatório estima que, entre as pessoas que referem ter jogado dinheiro nos 12 meses anteriores ao inquérito, 15,4% teriam jogado um jogo problemático e 9,3% apresentariam um possível distúrbio devido a jogo. Estes dados implicam, extrapolando para a população espanhola de 15 a 64 anos, que 0,4% das pessoas jogam um jogo problemático e 0,3% têm um possível distúrbio de jogo (Observatorio Español de las Drogas y las Adicciones, 2019)
Diversos inquéritos também indicam que a maioria da população jovem usa habitualmente videojogos, empregando em alguns casos quantidades significativas de tempo. De acordo com um relatório de 2012 (Interactive Software Federation of Europe, 2012) , um em cada quatro cidadãos jogou videojogos na última semana e mais de 70% dos jovens entre os 6 e os 24 anos jogaram videojogos. A Espanha está na média europeia de uso, e os videojogos são a primeira opção de lazer audiovisual, com uma faturação de 1.083 milhões de euros em 2015. Diversos estudos determinam que entre 9 e 23% dos jovens espanhóis jogam diariamente, aumentando a proporção durante o fim de semana. O tempo dedicado aos videojogos aumenta com a idade, até 5,16 horas por semana, em média (Lloret et al., 2018).
É um facto que nas últimas décadas (especialmente nos últimos anos) a preocupação da sociedade sobre os seus potenciais efeitos negativos aumentou significativamente (Gentile et al., 2017)
O jogo patológico e as suas repercussões a nível social e da saúde são uma questão que começou a receber atenção da comunidade científica a partir de meados da década de 70 do século passado. No entanto, o seu reconhecimento oficial não ocorreu até 1980, quando a Associação Americana de Psiquiatria (APA) o incluiu na terceira revisão de seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais (DSM) como uma das suas categorias dentro dos distúrbios de controlo de impulsos não classificados em outras secções (American Psychiatric Association, 1980) .A Organização Mundial da Saúde (OMS), incluiu pela primeira vez, na sua Classificação Internacional de Doenças (CID) esta categoria de diagnóstico na décima revisão (World Health Organization, 2004) neste caso também como um distúrbio de controlo dos impulsos. Assim, até ao aparecimento do DSM-III, os autores que estudavam este distúrbio referiram-se ao mesmo com nomes como “jogo neurótico”, “jogo compulsivo”, “jogo excessivo”, “jogo viciante” e também “jogo patológico”. (Sánchez Hervas, 2003).
Em 2013, o DSM-5 (American Psychiatric Association, 2013) inclui o jogo patológico numa nova categoria denominada “distúrbios relacionados com substâncias e distúrbios aditivos”. Nesta categoria, diferencia os distúrbios relacionados com substâncias do jogo patológico (o único “vício comportamental” reconhecido até ao momento). Esta alteração do DSM-5 em relação às edições anteriores reflete a ideia de que os comportamentos do jogo ativam sistemas de recompensa semelhantes aos ativados pelas drogas, pois produzem alguns sintomas comportamentais semelhantes aos distúrbios relacionados com o consumo de substâncias (Sánchez Hervas, 2003) (Sociedad Española de Toxicomanías., 1999).
Deste modo, quando se fala de jogo patológico, é feita referência a um padrão de jogo problemático persistente e recorrente (que não se explica melhor pela presença de um episódio maníaco), que causa deterioração ou mal-estar clinicamente significativo e se manifesta porque o indivíduo apresenta quatro (ou mais) dos critérios listados na Tabela 1. Critérios diagnósticos do distúrbio patológico do jogo. DSM-5, 1 durante um período de 12 meses.
Como se pode ver, este distúrbio refere-se exclusivamente ao jogo de apostas. Tudo o que tem a ver com o jogo sem compensação económica não se enquadra nesta categoria. O grupo de trabalho da atualização entendeu que, no momento da publicação, não havia evidência suficiente sobre se os problemas relacionados com o jogo sem compensação económica constituem uma única patologia mental nem sobre os critérios de diagnóstico para o classificar.
No entanto, reconheceram que existe uma categoria de diagnóstico, que denominam “distúrbio por jogo na Internet”, que requer mais investigação. O grupo de trabalho entende que deve ser um padrão de comportamento recorrente e persistente que leva a uma deterioração ou a um mal-estar clinicamente significativo em vários aspetos ou áreas da vida da pessoa. No entanto, esta categoria circunscreve-se às atividades de jogo na Internet ou em qualquer outro dispositivo eletrónico e exclui problemas decorrentes do uso geral da Internet, das redes sociais e dos smartphones, assim como as apostas online. A Tabela 2. Critérios diagnósticos do distúrbio por jogo na Internet. DSM-5, inclui a lista de sintomas para esta categoria de diagnóstico. O diagnóstico requer a presença de 5 ou mais sintomas ao longo de 1 ano. (American Psychiatric Association, 2013) .
Pelo seu lado, a CIE-11 (World Health Organization, 2018), que entrará em vigor em 2022, incorpora uma classificação muito semelhante à do DSM-5. A secção “Distúrbios devidos ao consumo de substâncias ou a comportamentos aditivos” incorpora a subsecção “Distúrbios devido a comportamentos aditivos” que inclui duas categorias de diagnóstico, dependendo de se o padrão de comportamento se refere ao jogo de apostas ou ao uso de videojogos:
Nos dois casos, o padrão de comportamento persistente ou recorrente pode referir-se a uma atividade online ou offline. Na Tabela 3. Critérios de diagnóstico dos distúrbios por jogo de apostas e uso de videojogos. CIE-11, especificam-se os critérios comuns para ambas as categorias de diagnóstico..
A maioria dos jogadores patológicos referem que começaram a jogar na adolescência. Diversos estudos referem uma idade média de início de 13 anos (a metade fá-lo entre os 11 e os 19 anos, embora até um terço o faça antes dos 10 anos). A investigação indica que os padrões de jogo são estabelecidos durante a etapa infantil e vão evoluindo à medida que a pessoa cresce e tem acesso o dinheiro e às diferentes modalidades de jogo (Gupta & Pinzon, 2012). Desta forma, o jogo patológico faz parte de um continuum que vai do padrão de jogo adaptativo e não problemático (no que se encontra a maioria da população) até ao jogo patológico, com uma série de graus intermédios.
A literatura indica que existem certas características que podem constituir fatores de risco para o desenvolvimento de problemas relacionados com o jogo, como problemas de estado de ânimo, as perdas e os distúrbios adaptativos, os abusos, a baixa autoestima, a impulsividade, os traços de personalidade antissocial ou a presença de problemas de aprendizagem. No caso das pessoas mais jovens, também influencia a habitual tendência de correr riscos e a imaturidade da capacidade de tomada de decisão (Gupta & Pinzon, 2012) .
O aspeto nuclear dos padrões de comportamento disfuncionais relacionados com o jogo é a relação de dependência que a pessoa estabelece com o comportamento envolvido, ou seja, a perda de controlo sobre a atividade, que continua apesar das suas consequências negativas. De um modo geral e como se tem visto, a sintomatologia relacionada costuma ser a seguinte:
Intenso desejo ou necessidade de realizar a atividade e irritabilidade e mal-estar perante da impossibilidade de a realizar.
Necessidade de aumentar o tempo dedicado à atividade.
Perda progressiva de controlo sobre a atividade.
Focalização progressiva das relações, atividades e interesses relacionados com a atividade e abandono de outros interesses, relações e atividades anteriores (familiares, académicas, laborais, de lazer e de tempos livres).
Negação da problemática existente, apesar dos avisos das pessoas à sua volta.
Além dos critérios de diagnóstico do DSM já comentados, existem diversas ferramentas de triagem de padrões de jogo patológico, alguns deles concebidos especificamente para jovens. É o caso do questionário de triagem de jogo patológico na população adolescente (South Oaks Gambling Screen-Revised for Adolescents, SOGS-RA) (Becoña, 1997). Como se pode ver na Tabela 4. Questionário de triagem de jogo patológico na população adolescente (SOGS-RA), trata-se de uma escala de triagem de jogo patológico, composta por 12 itens. O item 1 consiste em 4 alternativas de resposta (sempre; na maioria das vezes; em algum momento; nunca) e o resto em duas alternativas (sim/não). A cada resposta afirmativa é atribuído 1 ponto (assim como a “sempre” e “na maioria das vezes” no caso do item 1). Ao resto são atribuídos 0 pontos.
As pontuações são classificadas em 3 categorias: não jogador ou sem problemas de jogo (0-1 respostas afirmativas), jogador em risco (2-3 respostas afirmativas) e jogador problemático (4 ou mais respostas afirmativas). Previsivelmente, as pessoas classificadas como jogadores problemáticos estariam a ter problemas com o jogo que estariam a ter um impacto negativo no seu funcionamento quotidiano, ao passo que as pessoas classificadas como jogadores em risco estariam num estágio menos grave, mas o seu padrão de jogo poderia causar-lhes problemas no futuro.
Existem ferramentas mais curtas, como a Escala breve sobre jogo patológico adolescente (Brief Adolescent Gambling Screen, BAGS), um questionário específico para jovens, composto por 3 itens com 4 opções de resposta (0 nunca; 1 quase nunca; 2 às vezes; 3 frequentemente). Uma pontuação total de 2 ou mais indicaria a necessidade de uma avaliação mais detalhada dessa pessoa. Trata-se de uma escala criada recentemente, ainda não validada na população espanhola, pelo que o seu uso é proposto como um guia para a avaliação do padrão de jogo num contexto de tempo limitado. Na Tabela 5. Escala breve de triagem do jogo patológico adolescente (BAGS) , são listados os 3 itens que a compõem.
No que diz respeito ao distúrbio por jogo na Internet, ao tratar-se de uma categoria recém-criada, a Associação de Pediatria Americana conclui, no seu relatório sobre este distúrbio em adolescentes (Gentile et al., 2017) que, neste momento, seria prematuro emitir uma recomendação sobre o uso generalizado de uma ferramenta de triagem específica, no entanto, refere que uma das utilizadas é a Escala de triagem do distúrbio por jogo na Internet (IGD) (Lemmens, Valkenburg, & Gentile, 2015)que se limita a transferir para as perguntas cada um dos 9 critérios de diagnóstico incluídos no DSM-5. Desta forma, a escala é composta por 9 itens com duas opções de resposta (sim ou não) e, a partir de 5 respostas afirmativas, poderia considerar-se que o doente tem um problema com seu padrão de jogo na Internet.
A literatura científica contempla um conjunto de intervenções para ajudar as pessoas com problemas de jogo. Estas incluem tratamentos farmacológicos, psicológicos e de carácter social. Um artigo canadiano recente (Problem Gambling Research and Treatment Centre, 2011) reviu a evidência disponível em relação às diferentes opções de intervenção (destinadas à população geral). A Tabela 6. Compilação da evidência sobre as diferentes opções terapêuticas em relação ao jogo patológico , inclui um resumo das recomendações.
Recomendação | Evidência da recomendação |
---|---|
A terapia cognitivo-comportamental individual ou em grupo deve ser usada para reduzir o jogo patológico, a gravidade do padrão de jogo e o sofrimento psicológico em pessoas com problemas de jogo. | B |
A técnica de entrevista motivacional e a terapia de melhoria motivacional devem ser usadas para reduzir o jogo patológico e a gravidade do padrão de jogo em pessoas com problemas de jogo | B |
As intervenções psicológicas realizadas por profissionais devem ser usadas para reduzir a gravidade do problema e o padrão do jogo patológico em pessoas com problemas de jogo | B |
As intervenções psicológicas administradas por um profissional devem ter prioridade sobre as intervenções psicológicas de autoajuda para reduzir a gravidade do problema e o padrão do jogo patológico em pessoas com problemas de jogo | B |
As intervenções psicológicas em grupo poderiam ser usadas para reduzir ao padrão de jogo patológico e a gravidade do problema de pessoas com problemas de jogo | C |
Os fármacos antidepressivos não devem ser usados de forma isolada para reduzir a gravidade do problema em pessoas com problemas de jogo patológico | B |
A naltrexona poderia ser usada como uma ferramenta farmacológica para reduzir a gravidade do problema em pessoas com problemas de jogo patológico | C |
Manual de intervención en juego patológico [Manual de intervenção no jogo patológico] (Servicio Extremeño de Salud [Serviço Extremenho de Saúde]). Disponível em http://www.drogasextremadura.com/archivos/manual.pdf
Guía clínica: actuar ante el juego patológico [Guia clínico: agir perante do jogo patológico] (Junta de Andalucía [Junta da Andaluzia]). Disponível em http://www.ipbscordoba.es/uploads/Documentos/2016/GUIA_CLINICA_JUEGO_PATOLOGICO.pdf
Tudo o que os médicos devem saber sobre distúrbios do jogo (National Center for Responsible Gaming, em inglês). Disponível em http://www.ncrg.org/sites/default/files/uploads/docs/monographs/ncrgmonograph7final.pdf
Guía Jugando a perder, la ludopatía [Guia Jogar para perder, a dependência do jogo] (Departamento de Sanidad del Gobierno Vasco) [Departamento de Saúdo do Governo Basco]. Disponível em https://psicopedia.org/wp-content/uploads/2013/09/ludopatia_PDF.pdf
Esta publicação foi possível graças ao programa de cooperação Interreg VA Espanha-Portugal POCTEP - RISCAR 2014-2020.
A Revista Infância e Saúde (RINSAD), ISSN: 2695-2785, surge da colaboração entre as administrações de Portugal, Galiza, Castela e Leão, Extremadura e Andaluzia no âmbito do projecto proyecto Interreg Espanha-Portugal RISCAR e visa divulgar artigos científicos relacionados com a saúde infantil, contribuindo para pesquisadores e profissionais da área uma base científica onde conhecer os avanços em seus respectivos campos.
O projeto RISCAR é cofinanciado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) através do Programa Interreg V-A Espanha-Portugal (POCTEP) 2014-2020, com um orçamento total de € 649.699.
Revista produzida pelo projecto Interreg Espanha - Portugal RISCAR com a Universidad de Cádiz e o Departamento Enfermería y Fisioterapia del Universidad de Cádiz .
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