Abstract: Resumo É realizada a revisão de um artigo de revisão crítica tendo como base a seguinte pergunta: O ondansetron é o fármaco de referência para abordar a gastroenterite aguda nas urgências pediátricas? Foi selecionado o artigo de Freedman (Freedman et al., 2006). Os resultados indicam um déficit a nível da metodologia utilizada para comparar o ondansetron com um placebo.
Keywords: Ondansetron; Tratamento de Emergência; Placebo
Apesar de se recomendar a terapia de reidratação oral para crianças com desidratação ligeira a moderada, esta continua a ser infrautilizada. Os médicos que prestam cuidados nos serviços de urgências são mais propensos a escolherem a via intravenosa durante a reidratação oral quando o vómito é um sintoma importante. Num inquérito, 36% dos pediatras afirmou que o vómito era uma contraindicação para a reidratação oral. Portanto, é provável que um método seguro e eficaz para controlar o vómito aumente a taxa de utilização e o êxito da reidratação oral, o que agiliza a abordagem nas urgências e reduz a pressão nestas unidades uma vez que se pode dar alta à criança com maior celeridade e segurança.
Um dos medicamentos de escolha devido ao seu potente efeito antiemético é o ondansetron, mas diversos estudos questionavam a sua indicação em doentes pediátricos, desde a possibilidade de gerar arritmias cardíacas, até ao potencial para causar diarreia, o que se converte numa contraindicação relativa em quadros em que este seja o sintoma predominante, acompanhado de vómitos. Situação muito frequente na abordagem das GEA nos serviços de urgências tanto pediátricos como de doentes adultos.
Deveria colocar-se a questão de se o ondansetron é o fármaco de referência para abordar a gastroenterite aguda nas urgências pediátricas (Freedman, Adler, Seshadri, & Powell, 2006). Para isso, nos voltamos para o desenho da questão clínica no formato PICO no Tabela 1:
Problema (P) | Intervenção (I) | Comparação (C) | Resultado (O) | |
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Abordagem geral | Tratamento do vómito em crianças | Administração do ondansetron | Placebo | Redução da presença e frequência dos vómitos, melhor ingestão oral, menor necessidade de reposição intravenosa |
Abordagem específica | Tratamento do vómito em crianças com GEA entre 6 meses e 10 anos (nas urgências) | Administração do ondansetron oral (comprimidos de dissolução oral) | Placebo (mesmo formato) |
Fonte: (Freedman et al., 2006)
Com base nesta pergunta, procurámos a evidência nas fontes de referência e encontrámos o artigo de Freedman (Freedman et al., 2006), publicado numa revista de muito alto impacto. Para além disso, este autor continuou a publicar esta linha e é citado em várias revisões sistemáticas, incluindo a da AAP.
Uma leitura rápida do artigo, centrada no resumo, constata umas conclusões muito prometedoras, e que parecem encaixar na nossa pergunta: “Nas crianças com gastroenterite e desidratação, uma dose única de ondansetron oral reduz os vómitos e facilita a reidratação oral e, por isso, pode ser muito adequado para ser usado no serviço de urgências”. Mas, quando se revê a metodologia, contata-se que: “Foram incluídas 215 crianças de 6 meses a 10 anos de idade que foram tratadas num serviço de urgências pediátricas quanto a gastroenterite e desidratação. Depois de serem selecionadas aleatoriamente para tratamento com comprimidos de dissolução oral de ondansetron ou placebo”. E nos resultados assinala-se que: “Em comparação com as crianças que receberam o placebo, as crianças que receberam o ondansetron eram menos propensas a vomitar (14% em comparação com 35%; risco relativo, 0,40; intervalo de confiança de 95%, 0,26 a 0,61), vomitavam com menos frequência (número de episódios por criança significaria, 0,18 vs. 0,65; p<0,001), tinham uma maior ingestão oral (239 ml vs 196 ml, p = 0,001), e eram menos propensas a serem tratadas por meio de reidratação intravenosa (14% em comparação com 31%; risco relativo, 0,46; intervalo de confiança de 95%, 0,26 a 0,79)”.
Há, pois, uma diferença clara a favor do medicamento, comparado com o placebo. Esta é a resposta que queremos?
A «qualidade global» de um estudo de investigação clínica é um conceito complexo que inclui:
O primeiro aspeto é a pertinência clínica, entendendo-se como tal que se trate de perguntas e, sobretudo, de resultados de investigação úteis para a decisão clínica
O segundo aspeto é a «qualidade metodológica» ou em que medida o desenho, a realização e a análise minimizam os vieses de seleção, medição e confusão, ou seja, em que medida é válido o estudo ou, dito de outra forma, até que ponto acreditamos nos resultados.
O terceiro aspeto é a aplicabilidade ou transferibilidade do resultado a um doente concreto (ou grupo de doentes), considerando os outros elementos que influenciam a aplicação desta evidência («representatividade» dos doentes do ECA, relação riscos/benefícios, disponibilidade, valores do doente, custos, etc.).
Um dos aspetos fundamentais, e que foi assinalado como “duvidoso” na leitura, é a COMPARAÇÃO. Neste aspeto está, sem dúvida, a chave prática e ética dos ECA. Do ponto de vista do clínico prático, só faz sentido comparar novas intervenções com intervenções com efeitos já comprovados, ou pelo menos que sejam os tratamentos usuais; não usar tratamentos comprovados seria ilícito e, para além disso, essa comparação reproduziria o possível dilema decisional real (novo tratamento em comparação com o tratamento habitual).
A intervenção comparativa reflete o ponto de atrito entre duas dialéticas diferentes: a da prática clínica e a da investigação clínica e é, portanto, uma questão crucial que condiciona o desenho de várias maneiras.
Em primeiro lugar, requer um conhecimento explícito do estado do tratamento para a condição ou cenário clínico em questão (preferencialmente por meio de uma RS). Em segundo lugar, a existência de tratamentos eficazes limita o uso do placebo como técnica de investigação e obriga a incluí-los nas comparações.
E aqui está a dúvida: existem outros tratamentos antieméticos conhecidos e de uso frequente no cenário proposto?
A comparação com o placebo causa inevitavelmente um viés de seleção relacionado com a comparação assimétrica entre um medicamento eficaz e um elemento passivo (ou do qual não se espera nenhum resultado). Para além disto, esta comparação pode induzir a uma sobrestimação dos resultados do medicamento em relação ao objetivo proposto de ser indicado como um elemento que reduz a presença do evento (neste caso, vómitos) na população e no ambiente escolhido.
Assim, a correção no modelo entra em conflito com a pertinência a nível da escolha do modelo de comparação selecionado.
A ferramenta de revisão mais generalizada para os ensaios clínicos (CONSORT), ver Imagen 1. Amostra da lista de verificação da informação que é necessário incluir ao notificar um ensaio clínico aleatorizado, Tradução Imagen 1. Amostra da lista de verificação da informação que é necessário incluir ao notificar um ensaio clínico aleatorizado não destaca carências evidentes no artigo.
Fonte: CONSORT 2010 http://www.consort-statement.org/
Secção/Tópico | Item N.º | Itens da lista de verificação |
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Título e Resumo | ||
1a | Identificar no título como um estudo clínico aleatorizado | |
1b | Resumo estruturado de um desenho de estudo, métodos, resultados e conclusões (para orientação específica, consulte CONSORT para resumos) | |
Introdução Fundamentação e objetivos |
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2a | Fundamentação científica e explicação do raciocínio | |
2b | Objetivos específicos ou hipóteses | |
Métodos Desenho do estudo |
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3a | Descrição do estudo clínico (ex.: paralelo, fatorial) incluindo a taxa de alocação | |
3b | Alterações importantes nos métodos após ter iniciado o estudo clínico (ex.: critérios de elegibilidade), com as razões | |
Participantes | ||
4a | Critérios de elegibilidade para participantes | |
4b | Informações e locais (centros e instituições) de onde foram coletados os dados | |
Intervenções | 5 | As intervenções de cada grupo com detalhes suficientes que permitam a replicação, incluindo como e quando eles foram realmente administrados |
Desfechos | 6a | Medidas completamente pré-especificadas definidas de desfechos primários e secundários, incluindo como e quando elas foram avaliadas |
6b | Quaisquer alterações nos desfechos após o estudo clínico ter sido iniciado, com as razões | |
Tamanho da amostra |
7a | Como foi determinado o tamanho da amostra |
7b | Quando aplicável, deve haver uma explicação de qualquer análise intermédia e diretrizes de encerramento | |
Aleatorização | ||
Geração da sequência |
8a | Método utilizado para geração de sequência aleatorizada de alocação |
8b | Tipos de aleatorização, detalhes de qualquer restrição (tais como aleatorização por blocos e tamanho do bloco) | |
Mecanismo de ocultação da alocação |
9 |
Mecanismo utilizado para implementar a sequência de alocação aleatorizada (como recipientes numerados sequencialmente), descrevendo os passos seguidos para a ocultação da sequência até as intervenções serem atribuídos |
Implementação | 10 | Quem gerou a sequência de alocação aleatorizada, quem inscreveu os participantes e quem atribuiu as intervenções aos participantes |
Ocultação | 11a | Se realizado, quem foi cegado após as intervenções serem atribuídas (ex. Participantes, cuidadores, assessores de resultado) e como |
11b | Se relevante, descrever a semelhança das intervenções |
A declaração de Helsínquia determina quando se pode utilizar o placebo na investigação clínica: "Os possíveis benefícios, riscos, custos e eficácia de qualquer novo procedimento devem ser avaliados em comparação com os melhores métodos preventivos, diagnósticos e terapêuticos existentes. Isto não exclui que um placebo, ou nenhum tratamento, possa ser usado em estudos para os quais não existem procedimentos preventivos, diagnósticos ou terapêuticos comprovados."
É bem possível que o ondansetron seja um fármaco de primeira linha no cenário clínico planeado (Higgins & Green, 2011), mas não é menos certo que a comparação escolhida não é muito feliz.
A escolha destes modelos de comparação não é incomum, mesmo em estudos de prestígio e de índole internacional. Há um exemplo em que um título bizarro mostra como esta prática é frequente na literatura científica. Uma metodologia correta não é suficiente para garantir a qualidade (Tomasik et al., 2016)
Ver Imagen 2 Tradução Imagen 2
Espanhol | Português |
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Lectura crítica | Leitura crítica |
Es una lectura activa, compleja y debidamente elaborada de una obra escrita. | É uma leitura ativa, complexa e devidamente elaborada de uma obra escrita. |
La lectura activa apela a la necesidad de comprensión cabal del texto escrito. | A leitura ativa apela à necessidade de compreensão cabal do texto escrito. |
La lectura compleja aspira a ampliar el nivel de análisis y comprensión de la información obtenida. | A leitura complexa visa aumentar o nível de análise e compreensão da informação obtida. |
La lectura debidamente elaborada consiste en relacionar lo que se obtiene directamente del texto y aquello que se infiere de él, con información extraída de otro texto. | A leitura devidamente elaborada consiste em relacionar o que se obtém diretamente do texto e o que se infere do mesmo, com informação de outro texto. |
Esta metodología aspira a desarrollar y fortalecer… | Esta metodologia visa desenvolver e fortalecer… |
La capacidad de razonamiento lógico y juicio crítico. | A capacidade de raciocínio lógico e de juízo crítico. |
La capacidad de identificar puntos de vista personales, confrontándolos con los propios del texto. | A capacidade de identificar pontos de vista pessoais, comparando-os com os do próprio texto. |
La capacidad de identificar en el texto falacias de razonamiento, sesgos, inconsistencias estructurales, faltas de confiabilidad, etc. | A capacidade de identificar no texto falácias de raciocínio, vieses, inconsistências estruturais, faltas de fiabilidade, etc. |
“El que lee mucho y anda mucho, ve mucho y sabe mucho”. Miguel de Cervantes Saavedra | “Aquele que lê muito e anda muito, vê muito e sabe muito”. Miguel de Cervantes Saavedra |
Ver Imagen 3 Tradução Imagen 3
Espanhol | Português |
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Junio de 2004 | Junho de 2004 |
Una comparación putativa con placebo de los ensayos SCOPE y LIFE. | Uma comparação putativa com placebo dos ensaios SCOPE e LIFE. |
No artigo escolhido, também podemos indicar como no final, no espaço onde são registados os conflitos de interesse e os agradecimentos, se inclui que o estudo recebeu subvenções, entre outros organismos, da GlaxoSmithKline, a empresa que desenvolveu a molécula, sob o nome comercial de Zofran®.
Assim, o uso de ondansetron para o quadro clínico proposto exigiria uma revisão na que se comparara a sua eficácia com outros fármacos, uma vez que existem numerosas alternativas que mostraram resultados e são seguras e amplamente utilizadas (Meredith, Murray, & McMurray, 2004)
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A Revista Infância e Saúde (RINSAD) surge da colaboração entre as administrações de Portugal, Galiza, Castela e Leão, Extremadura e Andaluzia no âmbito do projecto proyecto Interreg Espanha-Portugal RISCAR e visa divulgar artigos científicos relacionados com a saúde infantil, contribuindo para pesquisadores e profissionais da área uma base científica onde conhecer os avanços em seus respectivos campos.
As duas principais orientações da revista RINSAD são:
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